terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Da Síndrome de Stendhal



Menino diante de Guernica (Quadro de Pablo Picasso, produzido em1937)




Síndrome de Florença ou síndrome de Stendhal. É uma desordem sensorial que pode acometer pessoas presentes em lugares onde há obras de arte transcendentes, que as afetam. 








Afrescos de Giotto no teto da Basílica de Santa Croce. Florença, Itália

A Síndrome de Stendhal deve o nome ao escritor francês Stendhal (pseudônimo de Henri-Marie Beyle), o primeiro a mencionar o fenômeno ao descrever seus sentimentos diante dos afrescos de Giotto que cobrem o teto da Basílica de Santa Croce, na cidade de Florença. 




"Eu caí numa espécie de êxtase, ao pensar na idéia de estar em Florença, próximo aos grandes homens cujos túmulos eu tinha visto. Absorto na contemplação da beleza sublime... Cheguei ao ponto em que uma pessoa enfrenta sensações celestiais... Tudo falava tão vividamente à minha alma... Ah, se eu tão somente pudesse esquecer. Eu senti palpitações no coração, o que em Berlim chamam de 'nervos'. A vida foi sugada de mim. Eu caminhava com medo de cair"

Stendhal, relato da experiência em Florença (1817)



Em 1989, a psiquiatra Graziela Margherini publicou o estudo "La Síndrome di Stendhal, Il malessere del viggiatore di fronti a la grandezza dell'arte" em que detalha a sensação passageira porém profunda de hipersensibilidade a obras de arte de grande magnitude, experimentada por pessoas estranhas a obra em questão. Caracterizada por perda momentânea de orientação no espaço, palpitações, pressão psicológica, entre outros sintomas, a síndrome  também se dá em indivíduos com certa receptibilidade estética.


"O que eu gostaria que as pessoas entendessem do meu discurso é o conhecimento de um modelo de fruição artística, isto é, o que acontece em nossa mente quando apreciamos uma obra de arte, seja um quadro, uma estátua e eu diria que a idéia se estende até a música. É muito importante também porque, no fundo, fruir uma obra de arte sempre significa crescer, a tal ponto que recomendo fortemente a educação estética dos jovens."

Margherini, G: entrevista gravada para o filme "Sindrome Mortal" de Dario Argento (1996)



Capa do DVD do filme "Sindrome Mortal" de Dario Argento (1996)


Esse distúrbio também é conhecido por Síndrome de Florença porque, aparentemente, la foram relatados os primeiros casos e a maior parte dele. Isso se explica pelo fato de ser a cidade um museu a céu aberto com as ruas e praças carregadas das obras  da escultura e da arquitetura mais famosas da arte ocidental, naturalmente atraindo turistas e estudantes de toda parte do planeta e que, conforme o estudo acima, as pessoas que apresentaram a síndrome mostravam uma expectativa estética e um estado de espírito receptivo á apreciação da beleza.





Medusa. Michel Angelo Merisi da Caravaggio (1597)


"Eu gostaria de desafiar quem quer que seja, é pior que ir ao cemitério de noite, sózinho... Andar pelo Uffizi à noite, no escuro, com aqueles quadros, as caras que olham para você... de Michrlangelo, de Caravaggio... com aquele ódio [referindo-se à Medusa de Caravaggio]... Você vê que há uma presença forte do autor, você sente realmente vivo aquele rosto..."


Dario Argento, diretor do filme "Sindrome Mortal" falando sobre a procura por locação para o filme dentro da Gallerie degli Uffizi (1996)




O Homem de Pedra





Monumento a Balzac, escultura de Auguste Rodin (Data: 1897)




Experimentei a sensação da Síndrome de Stendhal pela primeira vez na exposição de Rodin de 1995 na Pinacoteca de São Paulo. Depois de muito tempo numa enorme fila que dobrava o quarteirão do jardim do prédio (e quem conhece, sabe que é grande), o que só aumentava a expectativa da visita, caminhei pelas esculturas soberbas do artista francês Auguste Rodin, estava maravilhada com tudo o tempo todo, esboços, moldes, esculturas finalizadas, ao lembrar, compreendo as palavras acima de Dario Argento, podia sentir que aqueles corpos e cabeças estavam realmente vivos. De repente, eu vi a escultura de Balzac (Monumento a Balzac, 1892-1897) e aquilo me atingiu...






Detalhe da escultura "Monumento a Balzac"


Uma cabeça arrogante, vaidosa, incrivelmente humana, totalmente voltada para um lado rompia de um bloco enorme, um tanto amorfo, que sugeria um corpo robusto, barrigudo até, coberto por um manto que se fundia com a base, interrompido apenas por um pé, a contraposto do rosto. Não sei descrever muito bem, lembro-me de ficar sem palavras, da impressão de que tudo tinha desaparecido, as pessoas e seus sons, toda a cor, só restava eu e aquele homem de pedra. Estava no maravilhoso tempo de Kairós, o tempo incomensurável, o tempo fora do tempo. 

Lembro-me de só sair do transe quando chorei. Estupendo.



"Le fruit et le résumé de toute ma vie et le pivot de mon esthétique personnelle"

Rodin, à respeito de seu Monumento a Balzac




Saber e Ver






Visitantes do Museu do Prado diante do quadro "As Meninas"


Quase 20 depois, em 2011, esse arrebatamento se repetiu no Museu do Prado (Madrid, Espanha), desta vez pelo quadro "Las Meninas" (1656) de Diego Velázques. Eu perambulava pelo Museu, meio sem saber onde ir, eu queria ver tudo, tudo era lindo, mas o museu era enorme e eu não tinha muito tempo. Resolvi só andar, andar a esmo, caminhar e ver. Tudo era tão belo. Lembro-me de uma escultura em mármore cujo trabalho do artista no panejamento dava a impressão de transparência no tecido que sugeria o corpo feminino que vestia, claro que fiquei ali um tempo, atrapalhando o percurso dos outros visitantes.  Então, entrei numa sala ao acaso, e lá estava a tela gigantesca (3,18x2,76m). De novo aquele soco no estomago.


Eu já conhecia a imagem, naquela altura da minha vida eu já era professora de história da arte e costumava trabalhar com a imagem em sala de aula, ou seja, sabia tudo o que há de racional para saber sobre a pintura, suporte, dimensões, técnica, tema, contexto, autor, etc., sabia extrair as características mais interessantes para a apresentação dos conteúdos, eu sabia... mas na verdade, eu só a conhecia por reproduções impressas ou digitais e pelas descrições e comentários em livros de arte, então, de fato, eu não fazia ideia do que era aquilo...


O tamanho, o poder de transporte... Havia uma multidão diante da tela, outra multidão na cena pintada, e eu ali, e já não estava ali, estava lá, não existia uma sala num prédio chamado Museu do Prado, era outra sala, um outro palácio e essas pessoas ao redor da infanta Margarida Tereza de Habsburgo, as meninas que a cercam e eu, também uma menina? (em espanhol, "menina" é o termo que designa a ocupação, que em português é  a dama de companhia), poderia estender uma fita, mais uma para o seu cabelo.

Meu marido me encontrou parada diante da tela, murmurando "Esse quadro é  '§0*@' ...  Esse quadro é '§0*@' ..." e as lágrimas escorrendo. E, olha que eu nem sou de chorar... 

Mal me lembro de tudo que vi no Museu, nem de antes de ver o quadro, nem depois. O quadro se sobrepôs a tudo, lançou seu encanto paralisante sobre aquela tarde. Preciso voltar para ver o resto...

"Toda obra de arte tem um poder sobre nós, quanto melhor for, mais poder. Mas a maioria das pessoas nunca vai entender..."

                                                                 Dario Argento, em depoimento sobre seu filme Síndrome Mortal" (1996)




 por Ivany Sevarolli, arquiteta

 
.

2 comentários: